11 Sep
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Aranhões, ratinhos, de Sacavém, Santana, Juncal, Coimbra, Aveiro, Devezas, Gaia, Miragaia, Viana, Fervença, do Norte, alentejana ou de Lisboa... quem pode dizer que nunca ouviu falar de faiança portuguesa?  Em nossa casa, na de família existem peças de faiança de fabrico nacional a que nem sempre se dá a devida atenção.      Figura 1- séc. XVII, oficina de Lisboa, ©PedroClode-2009, Museu Quinta das Cruzes

            Fig. 2 - séc. XIX, Vale da Piedade, Porto, ©PedroClode-2009, Museu Quinta das Cruzes

O prato de aranhões (séc. XVII) deve ter sido produzido em alguma oficina de  Lisboa.  A urna está marcada e não merece cuidado: da Fábrica de Sto. António (Vale da Piedade), Porto, (séc. XIX).  Há peças de faiança de todo o género: desde as que eram destinadas ao mercado de consumo para uso diário, às que tinham por destino a decoração, a homenagear alguém, ou a comemorar um acontecimento,  ou ocasião.  No primeiro caso, encontramos os pratos mais diversos, produzidos de Norte a Sul do país, de qualidades diversas e decorações também.  Além deles, as terrinas, travessas, saladeiras, moringues, galheteiros, saleiros e pimenteiros, taças e malgas, paliteiros, garrafas com a forma de figura humana, potes para tabaco, potes de cozinha, de farmácia, floreiras e cachepots, canecas, canjirões, bancos, urnas, etc., fizeram parte da vasta produção que saíu das mãos das olarias portuguesas e que podem ainda encontrar-se, antigas, ou de fabrico recente.   Destas últimas falaremos mais adiante.  Reservamos este  primeiro contacto com a faiança portuguesa para recordar a mais antiga e, dentro desta, apenas nos referiremos à louça, deixando de fora a destacada produção de azulejaria.                                                      

            A louvável iniciativa do Museu de Artes Decorativas  da C. M. de Viana do Castelo merece destaque, não só pelo  acervo, como pela forma de divulgação escolhida e  boa qualidade do vídeo produzido. Ver ali, peças do período inicial. 


São de finais do séc. XVI, as peças mais antigas que se conservam, época de manufactura ainda muito incipiente.  A maioria, no entanto, vem dos séculos seguintes, sendo oitocentista o grosso da produção de maior antiguidade.  O seu levantamento e registo por data e origem de fabrico tem interessado alguns autores (entre os quais se contam historiadores de arte e investigadores) e coleccionadores recentes que, deitando mãos à obra, conseguiram trazer a lume registos mais ou menos concordantes sobre o historial do fabrico da faiança portuguesa.                                 Fig. 3 - Aquamanil, séc. XVII, MNAA

E é acção de louvar, não só por haver poucos dados coevos (muitos deles consumidos pelo fogo, pela água, ou devorados por roedores e xilófagos, ou ainda destruídos por mão humana, por insignificantes), como pela sua dispersão e pelas mudanças dos oleiros, migrando desta para aquela fábrica e localidade.    A sacramental ausência de hábito de registar e guardar o rol dos que trabalhavam e do que faziam pelos responsáveis, faz parceria com a sintomática indiferença na assinatura das peças produzidas pelos artesãos, que, nesta arte, como noutras, antes do séc. XIX, muito raramente se identificavam, ou apunham datas nas peças.  De modo que há muita sabedoria de conhecedor na datação e atribuição das peças e da fábrica/oleiro que as produziu.  Ainda assim, a bibliografia sobre o assunto, iniciada em finais do séc. XIX, tem vindo a crescer; há uma relação, feita por Arthur de Sandão, n' A Faiança Portuguesa, a pág. 15 e ss., por exemplo.             Fig. 4 - Prato, séc. XVII, Museu da Quinta das Cruzes

Cito do mesmo autor: " O mérito da antiga faiança portuguesa transcende o apreço que lhe é dedicado, habitualmente mais por índole sentimental do que pela análise à sua história e morfologia". (Ibidem, p. 13)   Dou-lhe razão, muito embora reconheça que será necessário sublinhar a diferença entre faiança e a porcelana, cuja pasta terá qualidades evidentes e que, a um primeiro olhar, poderá requisitar mais facilmente a atenção do público.

        Fig. 5 - Jarro, francês, c. 1650-80

Na comparação com peças estrangeiras da mesma época, no entanto, nem sempre esta anuência se faz: a qualidade do material e aparato decorativo portugueses saem por baixo.  Dito isto, poderá parecer uma anacronia afirmar que a beleza e características da nossa faiança não desmerecem o interesse que se lhe tem votado.  Esperamos mostrar que assim não é.

    Fig. 6 - Majólica, Castel Durante, c. 1550-1570

As peças mais antigas de faiança têm atraído o olhar de públicos cada vez mais alargados, que as vão adquirindo, aqui ou ali; pela lei inevitável da oferta e da procura, os preços de mercado têm vindo a subir e o número de peças disponível, a descer.  Mais ou menos conservadas, muitas delas entraram já em colecções privadas.   Destas, dificilmente teremos notícia, embora as novas tecnologias tenham posto à nossa disposição ferramentas de que muitos particulares, interessados na matéria, têm feito bom uso.   Há, por vezes, entidades de serviço público que as incluem no seu espectro de interesses.  A  estas iniciativas e à disponibilização pública destes acervos se deve a boaventura dos apreciadores de faiança.    

    Fig. 7 - Pote, meados do séc. XVII, © CM

vendido por 16.000 € (2010)

Mas, infelizmente, também aqui, sobram exemplos que deixam a desejar: é o caso do Museu de Vila Franca e Xira, possuidor de restos de peças de faiança recuperadas do Tejo e que se mantêm nos reservados.  Por incrível que pareça, não constam sequer na lista pública do seu acervo (ver aqui).  Uma vez que foram estudadas com algum cuidado pelos alunos Casimiro e Sequeira (2017), não se compreende que estejam os responsáveis de costas viradas para o resultado das investigações que autorizam.  É nossa intenção apenas alertar, ou acordar interesses, pois não encontramos vantagem no apontar inútil de culpas, apostando, antes, na vontade da mudança para melhor.

             Fig. 8 e 9 - © BN (vendidas); são peças da Fábrica de Sant'Anna, Lisboa. Esta fábrica encontra-se ainda activa e tem  pág. electr.: http://www.santanna.com.pt/pt/historia 

 Uma iniciativa que merece destaque: a do Museu de Manteigas, possuidor de bonitas peças (mas cuja qualidade de reprodução fotográfica se deseja que venha a melhorar).  É uma colecção de faiança 'de ratinho', ou 'ratinha', que a respectiva página explica e documenta, embora não apresente a totalidade das peças.  Está aqui.   

          Fig. 10 - Faiança de ratinho, © OL

A partilha de alguns dos apreciadores da matéria traz muitas vezes associada divulgações de colecções próprias e alheias.  Aconselho a visualização da página de Ivete Ferreira, não só pelas apresentações que faz, como pela divulgação de um importante espólio de faiança ratinha, cujo coleccionador nos deixou recentemente: a colecção do eng.º José Abecassis, cujas peças foram, com certeza, enriquecer o espólio de coleccionadores diversos.  

Mais uma divulgadora de peso, Maria Andrade, que nos permite vislumbrar o coleccionador  Manuel Cargaleiro, no seu precioso catálogo. Incontornáveis também a Maria Izabel, o Jorge Amaral, o Manuel Dias, o Luís Montalvão.

    Fig. 11 - Tinteiro séc. XVIII, Viana, ©Alto Minho

A possibilidade de visualizar estas peças directamente em museus tem tido, assim, maior incremento, tanto pela exibição em permanência, como pelas exposições temporárias levadas a cabo, como ainda pela divulgação informática, possivelmente por necessidade de dar resposta ao crescente interesse do público.   Escolhi o Museu Soares dos Reis, espaço de que gosto muito, aliás.  Trago-o pela mão de Juliana Veronese, também ela agradada com a oferta e admiradora do Museu:  veja aqui.

Fig. 12 - Pratos, MSR, © JL 

A produção de faiança nacional não ficou indiferente às mudanças de gosto das épocas.  Tanto a modelagem da pasta, como os temas e decorações evoluiram, passando a apresentar mudanças dos coloridos, que variaram com os locais de produção, com o gosto do oleiro/decorador, mas também com os hábitos de consumo, ou com a necessidade de suprir faltas e responder a pedidos e encomendas.   Ao fornecimento do mercado nacional (que incluía também os territórios ultramarinos, particularmente os banhados pelo Atlântico), e fruto da política proteccionista do Marquês de Pombal, o fabrico e expansão da produção para consumo português, acrescentou-se, com a produção para exportação europeia e americana.  Sim, exactamente, americana também.  Neste assunto, como noutros, aliás, a nossa presença e a importância que ela teve, em termos do conhecimento global, tem vindo gradualmente a mudar, à medida que autores mais recentes, em especial os de expressão anglo-saxónica, vão descobrindo que, ao contrário do que haviam afirmado antes alguns dos seus pares, à cultura portuguesa devem muito mais do que supunham.  

      Fig. 13 - Pinhas, Dagmar Sabóia ©, Brasil, peças  vendidas  

Desta feita, deixamos aqui, a publicação de Charlotte Wilcoxen, de 1999, que saíu na Northeast Historical Archaeology, vol. 28, art.º 2, intitulada "Seventeenth-Century Portuguese Faianca and Its Presence in Colonial America".  O seu a seu dono.

Fig. 14 - Aquário português, séc. XVIII (Ansorena ©, Madrid), peça vendida  

Nascem no séc. XVIII a maioria das fábricas de onde saírão para o comércio muitas das bonitas peças de faiança portuguesa que ainda hoje admiramos: Miragaia (1775-1852) e Cavaquinho (1780-190?), no Porto, Sto. Antº do Vale da Piedade ( 1785-193?), em V. N. de Gaia, Fábrica de Viana (1774-1850), e em Lisboa a Fábrica de Paulette (Trav. dos Ladrões, Sto. Amaro), Romão dos Púcaros, Real Fábrica de Louça (1780), Fábrica da Calçada do Monte (1793), Trav. da Bela Vista à Lapa (1794), Castelo Picão (1794), Real Fábrica da Bica do Sapato (1796).  E mais haverá certamente, pois o nosso apanhado não é exaustivo.                         Fig. 15 - Prato, séc. XVIII, © PCV, vendido

Mas também a qualidade da pasta, do vidrado e métodos de cozedura se vai a pouco e pouco modificando, em boa parte como resultado de um conhecimento mais apurado que a prática confere e, simultaneamente, pela introdução de outras técnicas e fazeres com a vinda de oleiros do estrangeiro para trabalhar nas fábricas existentes, alguns dos quais, mais tarde, aqui se estabelecem por conta própria.  

  Fig. 16 - Pote para tabaco, c. 1790-1860, © MNSR

Menção deve ser feita à presença de Wenceslau Cifka (1811-1884), natural da Boémia, que chegou a Portugal por altura do casamento de D. Fernando de Saxe-Coburgo com a rainha D. Maria II, em 1836, e por cá ficou.  Amante da arte, cedo se apaixonou pela fotografia, tendo oferecido a diversas figuras da realeza portuguesa álbuns fotográficos da sua autoria.  Retratou, particularmente, o futuro rei D. Fernando, com quem partilhava a mesma paixão pela artes e de quem se tornou muito próximo.    

       Fig. 17 - Prato Cifka (PCV ©)

Cifka, que foi, também, grande coleccionador de gravuras, desenvolveu um gosto muito particular pela faiança e, de tal modo se aplicou na sua execução, que se tornou exímio produtor e decorador.     

   Fig. 18 - Jarro Cifka (PCV ©)

A faiança estatuária portuguesa do séc. XIX, modelada ao gosto da época, mas de ressonâncias italianas, em parte, dando forma a bustos que atravessam a época clássica grega também, vai ter uma resposta digna nos trabalhos apresentados por Tomás Brunetto, entre 1769-1771, na Real Fábrica de Louça, ao Rato  (Lisboa) e no Norte (Porto. Vale da Piedade,  que laborou entre 1785-193..., ,  com Rocha Soares, 1924-33,  e Gaia/Miragaia, com Soares dos Reis e Teixeira-Lopes Jr., respectivamente nas fábricas de Devezas e Pereira Valente) e que, regra geral, ostentavam um acabamento branco-esmaltado uniforme.                             Fig. 19 - Primavera, Miragaia (© V.M., Brasil-peça vendida)

De entre os restantes produtores de peças do séc. XIX, tanto para uso utilitário, como meramente decorativo, pode e deve ser referida a Fábrica de Faiança das Caldas da Rainha, fundada em 1884, intimamente  ligada ao Museu Bordalo Pinheiro,  de criação mais recente, portanto, que muitas das fábricas referidas acima.  Na sua página electrónica, que vivamente se recomenda, podemos encontrar a história desta fábrica de loiça portuguesa e muita informação sobre o seu fundador, Rafael Bordalo Pinheiro, descendentes e colaboradores.  A abrangência do acervo permite apresentar produções artísticas de áreas diversas, que passam também pela caricatura, desenho, fotografia, pintura, etc.  De lá retirámos este exemplo de uma peça deveras excepcional, representativa da varina, muito típica das ruas de Lisboa, onde estava presente  ainda em meados dos anos 60.

Ocorrem-nos as palavras de Augusto de Castro, um de muitos que puseram no papel uma descrição sugestiva da varina, que povoou as ruas lisboetas.  É ouvi-lo:  "E, de facto, de lenço escuro em ponta sôbre as costas e os ombros, de saia curta ensacada,  de chapelinho redondo de feltro preto, sôbre o qual mal pousa e se equilibra o barcozito airoso da canastra, saltitando como uma ave, por essas ruas, ela é, a linda varina, a maravilha e a graça matinal desta Lisboa indolente.  Ao vê-la passar, movendo os quadris, quebrando a cinta, elevando, arqueando, como duas asas de ânfora, os braços, sôbre o busto que ondula, quási dançando e quási correndo, prolongando, na sua voz aguda, o desafio musical do pregão, sente-se que a sua figura, o seu andar, a sua desenvoltura de flor brava, tem, entre a banalidade saloia dos outros tipos da cidade, êsse encanto indefinível e singular que se chama o ritmo. "    (in Fumo do Meu Cigarro, Empresa Literária Fluminense, Lisboa, s.d., as pp. 32 -3) 

Fig. 20 - Pinha, finais séc. XIX, Devezas

Uma última chamada de atenção, ainda, para a produção da Fábrica de Cerâmica Constância, em Lisboa, que funcionou na viragem do séc. XIX para o XX.

Duas figuras se destacam no seu historial: a do italiano Leopoldo Battistini (1865-1936), desenhador e pintor que adquire nessa fábrica sociedade maioritária (1921) e vai produzir peças de boa qualidade e bem decoradas; a de  Maria de Portugal (pseudónimo de Albertina dos Santos Leitão, 1884-1971), desenhadora/decoradora de mérito na mesma fábrica, figura próxima de Battistini e que, depois da morte dele, assumirá a direcção, prestando-lhe homenagem na denominação do local que passará a identificar  como Fábrica Battistini.  

Fig. 22 e 23 - Jarro Vindimas, Battistini, Maria de Portugal e caixa Battistini, AFL ©, Brasil, peças vendidas

Muito mais haveria para referir, já que deixámos de fora referências a locais importantes da nossa produção, como a Fábrica do Carvalhinho, da Bandeira, de Massarelos, a faiança de Caminha, Coimbra, Aveiro, Alcobaça, Estremoz e em Lisboa particularmente, zona onde laboraram muitas fábricas, sendo que algumas de curta memória e outras que perduraram no tempo, como a Fábrica de Sacavém, a da Viúva Lamêgo, etc.  A elas voltaremos, com toda a probabilidade, quando registarmos a faiança azulejar.

   Telhas de beiral no Museu do Açude, Brasil, c. de 1920 (© porcelanabrasil) 

Há muito para dizer sobre a faiança portuguesa mais antiga e creio existir, neste momento, um público muito atento à matéria e à divulgação de saberes nesta área, a quem foi dada a oportunidade, em 2006, por exemplo, para apreciar a bela colecção de faiança da Casa-Museu Vieira Natividade, constituída por 245 peças, patentes na Ala Sul do Mosteiro de Alcobaça.  É preciso recordar que as referidas peças fazem parte de um largo acervo, doado pelo coleccionador  Manuel Vieira Natividade (1860-1918), que doou igualmente o edifício situado no Rossio de Alcobaça (com traço de António Lino, 1914), onde a colecção devia ser exposta.  Feito o inventário, fotografada, constituída por  Dec.-lei, em 1992... continua fechada!  Passados que estão 30 anos (trinta !!) sobre a sua constituição, pergunta-se o que é que aguardam os serviços camarários, detentores do conjunto, e os autárquicos e governamentais para finalizarem o processo?  Não serão com certeza falta de verbas, pois programas de financiamento cultural e de recuperação do património edificado têm sido agraciados com as correspondentes benesses europeias constantemente...  

A mesma questão volta à baila, por insistência da família, em 2018 (ver).  Passaram mais 5 anos... e NADA foi feito!